28 11 2012

– Você errou comigo! Demorou demais e seguia sussurrando que era tudo normal, que o ritmo estava certo. Porém, quando eu estava pronto já era tarde. Tudo o que eu tinha era passado, e você bem sabe que do passado não se vive, se tira lições.

Ele disse gesticulando furiosamente quando ouviu uma voz grave como o ruído continuo e uniforme de um trovão onipresente.

– Não pense que podes me julgar. Não errei contigo. Jamais errei em minha longinqua existência. Não erro porque apenas passo. Não há forma ou interpretação que possa recair sobre mim porque eu apenas existo, sem intenção ou ensinamento algum. Sou como uma onda invisível e silenciosa que jamais encontrará a costa, mas que carrega tudo em suas águas. Passo como se não houvesse movimento, mas, ao mesmo tempo, percebe-se em mim que nada é estático.
Essas ideias e aprendizados não sou eu quem trago, afinal. Isso é você, Homem, que me atribui. Que interpreta os fenômenos e efeitos que causam minha existência imemorial.
Aliás, é só você que tenta, com a lógica e os números, dar rótulos ao meu andar. Segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos, décadas, séculos, milênios… Isso só existe para o humano, que inutilmente tenta me enlatar em relógios e calendários.
Veja e aprenda com os demais seres vivos, eles não me qualificam, eles me sentem e se comportam baseados nestas coisas mais palpáveis e vivas… percepções que o ritmo natural das coisas nos traz… e quando eles sentem fome, comem. Quando o dia cai, se recolhem. Se sentem desejo, transam e, ao final de seu dia, cansados, dormem… mas nada tem um momento exato para acontecer, os desejos e necessidades nascem e o instinto os segue. Perceba que tudo isso surge pelo mergulho na Vida e não do controle dela. Tudo vem pela sensorialidade do que temos à nossa disposição e não pela busca incessante da racionalização de tudo que existe.
Portanto, criatura, viva e deixe-se viver! E sinta a vida pulsar neste ritmo extraordinário… as coisas, naturalmente, se ajustam… porque sempre foi assim. Acredite em mim, já estou aqui há bastante Tempo.

O homem, então, aquiesceu abaixando a cabeça. Depois seu rosto serenou,  e havia uma nesga de felicidade dentro de si, mesmo que a fisionomia não a revelasse. Ele caminhou de volta para casa sem nenhuma pressa.

Lucas De Nardi





Ela dançava

15 08 2011

Ela, então, passou a mão no meu olhar e o tirou para dançar. Mas eu não me movia, porque meus olhos não viam mais nada. E se fez impossível sair do lugar.
Ela não dançava para aparecer mais que qualquer outra, ela não dançava seduzindo a mim, ela não dançava apenas. Ela dançava sabendo que só ela existia para quem a visse, dançava ciente que o mundo um dia acabaria, mas agora o mundo era ela e era todo seu. Ela dançava e seu corpo não precisava de música porque seus desejos a embalavam. Ela dançava de forma louca… de forma linda… ela dançava… e nada mais se movia em mim, senão a ânsia do seu corpo no meu, numa outra dança…

T. Conthey





Vérotchka, Anton Tchékhov

6 06 2011

Enquanto caminhava, ele pensava que muitas vezes você encontra pessoas na vida e que, infelizmente, desses encontros não fica nada mais do que recordações. Acontece vermos de relance as cegonhas no horizonte, a brisa traz seus gritos triunfais e lamentosos, mas um minuto depois, por mais que você esquadrinhe ansiosamente o azul distante, não verá nem sinal delas, e não ouvirá um som sequer – exatamente assim as pessoas, com seus rostos e falas, passam de relance por nossa vida e se afundam em nosso passado, sem deixar mais do que ínfimos vestígios de lembranças. Vivendo desde a primavera na província de N. e frequentando quase que diariamente a casa dos Kuznetsov, Ivan Aleksêievitch acostumara-se ao velho, à sua filha e aos criados como se fossem sua família, e estudara nos mínimos detalhes toda a casa, a confortável varanda, as curvas das aléias, as silhuetas das árvores contra a cozinha e a casa de banho; porém, assim que ele sair agora pela cancela, tudo isso se tornará uma lembrança e para ele perderá para sempre sua importância real, e dali a um ano ou dois todas essas imagens agradáveis vão ficar embaçadas em sua consciência, no mesmo nível das coisas imaginadas e das fantasias.
“Não existe nada na vida mais caro do que as pessoas!” – pensava comovido Ogniov, enquanto caminhava pela aléia em direção à cancela. “Não existe nada!”





Sobre a noção do tempo

5 06 2011

– Há quanto tempo você está aí?
– Já estou fora do Brasil há 6 meses.
– Nossa, passou muito rápido… mas, por outro lado, se passou muita coisa…
Enquanto ele pensava em como a noção de tempo é ilusória. E que de todas as coisas, a única certeza é de que não há pausa na linha da vida…

Lucas De Nardi





…em movimento

29 03 2011

Ele entrou no táxi sem muito animo. Parecia que a porta era mais pesada do que as forças que seus braços podiam produzir.
– Vamos para onde, patrão? – foi como se a voz do taxista houvesse despertado o passageiro.
Ele levantou a cabeça sobressaltado. Enxergou o motorista pelo retrovisor com um olhar sonâmbulo, a boca abriu-se, mas alguns segundos se passaram antes que algum som fosse emitido.
– Eu não sei… não há mais para onde se ir…
– Como assim, patrão? Então o senhor entrou no táxi porque?
– Não sei, não há mais nada…
O motorista mostrou-se desconfiado, mas ao mesmo tempo curioso com o que poderia estar se passando na vida daquele homem bem vestido.
– Mas, senhor, vamos pensar bem. O senhor chamou meu táxi enquanto eu passava, portanto deve estar querendo ir à algum lugar, não é!?
– Pois é, queria… mas ela não está lá…
– Ela quem, senhor? Lá onde? E quem disse que ela não está?
– Eu mesmo vi, foi hoje. Antes de o dia amanhecer… eu estava na sala… ela me deixou, amigo.
– Mas deve ter pensando melhor e já está de volta. Diga-me onde é que levo o senhor para conferir isso. – o motorista teve que colocar o carro em movimento porque o transito naquela avenida não permitia nenhum carro parado em fila dupla.
– Não, ela carregava suas malas. Ela não olhou para trás, nem atendeu minhas ligações ao longo do dia… ela se foi, você precisa entender… e eu também. Mas agora, não há mais para onde ir… não há mais nada…
– E onde o senhor mora?
– Eu morava, amigo… morava… Agora já não moro mais. Morava com ela, entende?! A moradia era habitada porque ela a habitava.
– Sim, mas e agora?
– Agora ela se foi, você percebe? Acabou tudo.
– Entendo, mas o apartamento ainda existe, você deve ter a chave, pode ir para lá. – ele dava voltas pelo bairro sem se afastar muito do ponto de origem, pois achava que o distinto homem morava pela redondeza.
– Sim, o apartamento está lá, mas ele já não existe… ele se foi quando aquela mulher fechou a porta. Tudo ali existia para ela… inclusive eu…
– Poxa, amigo, não fale assim. Você é um homem trabalhador, deve ter muitas outras coisas na vida. O que você faz? – tentou animá-lo.
– Eu passei os últimos 20 anos de minha vida amando uma mulher… eu me dediquei a isso… eu não fui outra pessoa senão o amante dela. Mesmo na sua ausência, mesmo quando um dos dois viajava, sempre mantive ela dentro de mim. Como uma construção cujo resultado final o arquiteto não vê diariamente, mas sabe existir. E isso é o suficiente para que ela permaneça presente em sua vida. Este era eu… hoje, não sei mais…
Um silêncio se fez naquele pequeno espaço da parte de dentro do carro. As janelas estavam fechadas e o ruído da cidade, abafado, parecia uma trilha sonora tosca e mal executada em um filme em preto e branco.
– Eu quero apenas que você dirija, amigo. Vou lhe pagar o quanto for preciso, mas gostaria que você apenas dirigisse pela cidade. Não há destino certo porque eu mesmo não sei pra onde vou… Mantenha-me em movimento, é tudo que lhe peço. A inércia seria a morte para mim agora.
– Ok, doutor. Pode deixar que lhe mostrarei os pontos mais bonitos da cidade. E os mais imundos também, se quiser.
– Faça como lhe parecer melhor.

T. Conthey





O valor de si mesmo

7 02 2011

– Tudo o que você é como pessoa tem um valor inestimável. Todos os seus pensamentos, todas suas palavras, todas atitudes e mudanças que vocês faz são únicas e incopiáveis. Porém, é imprescindível que você saiba disso, que tenha consciência do quanto és valioso. A partir de então, tudo na vida ganha uma nova dimensão, tudo o que você produzir terá um significado verdadeiro.

Disse um senhor de voz macia e olhar penetrante ao menino que brincava na garoa. Ele então recolheu a bola dos pés do homem e seguiu pela calçada imaginando-se em uma partida com as àrvores.

T. Conthey





Sobre a coerência

27 01 2011

Francisco era um cara coerente. Acordava todos os dias bem cedo, porque gostava da claridade da manhã. Caminhava até o parque, porque detestava a ideia de ser sedentário. Procurava pelos pontos mais arborizados e lá acendia seu primeiro cigarro.

– Porque aqui o ar é mais puro – justificava para si mesmo.

T. Conthey





Cavalos do Amanhecer, Mário Arregui

14 11 2010
“Seu peito também se abria, docemente se abria e se dilatava para antigas ternuras, recordações ainda palpitantes que o alcançavam desde o sítio onde se esconde a infância. Seu coração disparava como o de um menino”




Quatro Contos de Lydia Davis

13 09 2010

MELANCOLIA DE PRIMAVERA
Estou contente de ver que as folhas estão ficando grandes tão depressa.
Daqui a pouco elas vão esconder o vizinho e se filho, que berra muito.

SOLITÁRIA
Ninguém está telefonando para mim. Não posso nem ver se há recados na secretária eletrônica porque fiquei aqui o tempo todo. Se eu sair, alguém pode telefonar enquanto eu estiver na rua. Aí vou poder ver se há recados na secretaria eletrônica quando eu voltar para casa.

INSÔNIA
Meu corpo dói tanto…
Deve ser esta cama pesada me apertando.

CABEÇA, CORAÇÃO
Coração chora.
Cabeça tenta ajudar coração.
Cabeça explica mais uma vez ao coração como são as coisas:
Você vai perder todas as pessoas que ama. Todas elas irão embora. Mas até a terra irá embora, um dia.
Então coração de sente melhor.
Mas as palavras da cabeça não duram muito nos ouvidos do coração.
Coração é muito novo nessa história.
Quero ter eles de volta, diz coração.
Socorro, cabeça. Socorra o coração.





Relógio

14 03 2010

1

Era azul, mas um azul estranho. Quando a luz acendia o azul ficava mais feminino. Tinha números grande demais, ficou enorme no seu punho, e ainda teve que ouvir da esposa:
– E nem pense em não usar, hein!? Demorei mais de duas horas para escolher. A atendente indicou este porque é a cor do verão, e a minha mãe me disse que comprei o mais bonito da loja.
Ele a olhou com um sorriso amarelo e disse:
– Nossa, realmente foi uma ótima escolha. Nunca tinha ganhado um relógio, acho que vou demorar para pegar o hábito de usá-lo. A gente acaba esquecendo, né!?
– Ah, Celso, mas pode deixar que eu te lembro.
A partir dali, todas as manhãs ele tinha que colocar o tal acessório para ir para a firma. Sentia-se ridículo com aquela situação. Imagine um assessor de contabilidade ter que usar esta merda. Nunca vi relógio tão grande e colorido,  pensava consigo mesmo.
Todos passaram a olhá-lo com desconfiança e seu chefe chegou a insinuar que ele andava muito estranho.
– Mas, Celso, onde você tem ido à noite? Algum lugar especial para que o seu relógio brilhe bastante? Sabe, ficar usando coisa muito colorida não pega bem para tua reputação, hein!? E teu casamento, como vai?
Chegou ao ponto de a esposa acordar de manhã para conferir se ele realmente estava usando o estimado presente.  E quando, propositalmente, o esquecia na cabeceira, Ana levantava-se, mesmo podendo dormir mais uma hora, e ia até a cozinha lhe entregar o pesado adereço.
– Ò, meu amor, não vá esquecer. – E ela mesma colocava-o.
Desde que havia feito aniversário, e se viu forçado a usar o relógio, nunca mais chamava o ônibus na parada, levantar o braço tornou-se uma vergonha para ele. Chegou a perder o ônibus alguns dias, porque não havia ninguém na parada que estava esperando a mesma condução que ele. Além disso,  sempre que esfriava um pouco, colocava uma roupa de mangas compridas. Mesmo sendo raros no Rio de Janeiro dias como estes, no mínimo uma vez por semana, escondia o braço.

2

– Olha, meu amor, este presente não é para você usar toda hora, hein!? Não quero ver você saindo de casa todos os dias com esta porra no braço.
– Ah, então é um relógio! Nossa, meu bem, como você adivinhou que há horas eu quero comprar um?
– Não é difícil, toda vez que a fulana da novela aparece usando aquela merda você fica do meu lado suspirando. E abre logo esta caixa que quero saber se você vai gostar.
Ela, então, se apressou por desembrulhar a pequena caixa que estava em suas mãos. Pareceu-lhe haver muito mais papel do que realmente havia, tamanha a ansiedade da mulher.
Logo que abriu a caixa ela deslumbrou um relógio grande, de um azul, que aos seus olhos, pareceu lindo. Apertou o botão e acendeu uma luz que o deixou o anil ainda mais brilhante. Todo seu rosto sorriu. O marido sentiu-se feliz por poder proporcionar-lhe tal alegria, apesar da inúmeras prestações que assumiu por causa daquele mimo.
Ela o colocou no punho:
– Me ajuda aqui, Jorge!
Os números eram grandes e ela nem precisava aproximá-lo muito do rosto, como fazia com o anterior, para saber as horas.
– A atendente disse que esta é a cor do verão, por isso eu comprei. Ainda bem que existem estas vendedoras, eu jamais conseguiria escolher com tantos modelos, tamanhos e cores que eles oferecem nessas lojas. De qualquer forma, o Abelardo, lá da oficina, me disse que chama muito a atenção. Por isso, não quero que você use todos os dias, hein!?
– Ah, Jorge, e quem disse que o idiota do Abelardo entende alguma coisa disso? Chamar a atenção? A única coisa que chama a atenção dele é bunda e futebol. O que ele entende de relógio?
– Bom, Janete, eu estou te avisando! Não quero ver você saindo todos os dias com esta porra. Não estou pagando uma nota por isso para um trombadinha levar embora na primeira semana.
Ela resignou-se, não podia reclamar. Aquela preciosidade em seu braço brilhava demais, ofuscando qualquer reclamação ou desgosto que o marido pudesse lhe fazer naquela hora. Naquele momento, tinha a absoluta certeza de que tinha o relógio mais bonito de toda a vizinhança, e trataria de exibi-lo para que todos o vissem.
Começou a sair de casa mais cedo, só para caminhar mais devagar enquanto cruzava com conhecidos da vizinhança, os quais, ela tinha certeza, espichavam bem os olhos para ver melhor seu relógio.

3

Celso já andava cabisbaixo, tamanha a infelicidade que o presente de sua mulher lhe trouxera. Começou tirar o relógio do punho assim que entrava no ônibus. Tinha medo de ser visto por ela fazendo aquele sacrilégio enquanto esperava a condução, já que sua casa ficava quase na frente do ponto.
Certo dia, abriu-se com o amigo de escritório:
–    Márcio, você não estava procurando um presente para sua mulher?
–    Sim. Mas já encontrei, você precisa ver que maravilha, comprei um soutien e uma meia-calça de cinta-liga. Nossa, ela vai ficar demais usando aquilo. Porque você me pergunta isso?
–    Não, por nada! É que estou com um relógio para vender.
–    Ah, sério?! Não sabia que você estava vendendo estas coisas agora. Por isso que você anda usando aquele relógio todo colorido e esquisito?
–    Não!É… Na verdade, é a forma que tenho pra divulgar. Mas este azul é bonito, né!? Não quer levar pra tua esposa?
–    Olha, Celso, não estou te entendendo. Este teu relógio é feminino?
–    Não, quer dizer, mais ou menos…
–    Mais ou menos não existe. Você é homem ou você é mulher? Então, o relógio é a mesma coisa, é pra homem ou pra mulher? Não vai me dizer que você andou este tempo todo com um relógio feminino só pra divulgá-lo!?
–    Cara, não é o que você esta pensado…
–    Ah, então acho que o pessoal do almoxarifado tinha razão quando falou que você andava estranho.
–    Como assim, Márcio? O que você quer dizer com isso?
–    Ah, eles falaram que você anda desmunhecando porque o relógio está muito  pesado.
–    E você acreditou nesta merda?
–    Claro que não, Celso. Somos amigos há quantos anos. Mas já estou começando a desconfiar.
–    Do que?
–    Pô, meu irmão, estou sentindo pela tua conversa que você que me dizer alguma coisa. Como dizem por aí, quer sair do armário…
–    Cala a boca! Nunca ouvi coisa tão absurda. Vocês enlouqueceram de vez.
–    Não, eu sempre te defendi, mas sei lá. Se você quiser, pode se abrir comigo.
–    Sou espada, Márcio. Vou abrir o que pra você? Quer saber mesmo a história desta porcaria de relógio?
–    Claro, é o que mais quero saber agora. Porque se você não virou viado, e nem está vendendo esta merda, não consigo entender porque anda usando esta porcaria de boiola.
–    Cara, isto foi presente da Ana! Não sei como ela pôde comprar uma coisa tão ridícula e que nada tem a ver comigo. E o problema não é só o fato de ela ter me dado este relógio. O mais complicado é que ela controla se eu uso ou não. Ela faz questão que eu sempre esteja usando esta merda.
–    Mas porque ela faz isso?
–    E eu sei lá! Ela disse que era o mais bonito da loja, que a mãe ajudou a escolher. Se duvidar, aquela jararaca da minha sogra forçou a filha a comprar este modelo para eu parecer viado mesmo. Com pinta de gay, a bruxa vai ter certeza que as mulheres não vão me dar mole. Desgraçada, deve ser culpa dela.
–    Eu não sei não, Celso. Este mundo anda tão louco. É homem usando coisa de mulher, mulher fazendo coisa de homem. Vai ver ta na moda mesmo, mas eu continuo achando uma viadagem.
–    Porra, nem me fala. Você não sabe o constrangimento.
–    E agora, vai fazer o que? Vender? E você acha que tua patroa não vai dar falta?
–    Ah, mas daí eu digo que fui roubado. E ainda uso a grana para comprar alguma coisa mais útil. Nunca precisei de relógio, tu vê mil relógios pelas ruas, nos ônibus, nos botecos, no telefone celular. Pra que eu preciso de uma coisa dessas?
–    Isso é verdade! Relógio é coisa de magnata, amigo. Os caras não tem mais onde meter dinheiro, daí ficam andando com o dinheiro no pulso.

4

Janete resolvera visitar a mãe naquele domingo de sol. E como já era de se esperar, tratou usar seu presente para mostrar a família. Sabia que a sua irmã mais velha estaria lá, e não poderia deixar esta oportunidade passar em branco.
A mãe nem sequer olhou direito seu acessório. Só percebeu que a filha carregava algo novo no braço quando Marise, virou-se pra caçula dizendo:
– Nossa, mas que relógio é este? Pelo jeito, o Jorge anda rico… ou virou traficante.
– Que engraçadinha você é, Marise. Olha, quando a pessoa trabalha, recebe uma coisa chamada dinheiro, para usar da maneira como deseja. Você sabia disso?
Janete no suportava o fato de sua irmã ser sustentada por um homem de 67 anos que não a deixava trabalhar, mas permitia-lhe todas as regalias que ela solicitasse, desde que continuasse sendo a namoradinha do idoso.
O dia passou entre um feijão mexido, típico dos almoços de domingo em família, uma partida de futebol, que seu pai e o irmão assistiram sozinhos na sala e muita conversa. Enquanto os homens da família estavam vidrados na televisão, Jorge não fora porque tinha um encontro com os amigos do pagode, as três mulheres foram para a parte externa da casa, que apesar de pequena, trazia-lhes ótimas lembranças. Muita coisa já havia acontecido por ali.
Subitamente, um pouco antes do final do dia, uma nuvem negra apossou-se do céu, parecendo uma mancha de óleo sob o mar.
– Xi, o tempo vai fechar! – Disse Marise, levantando-se e indo pegar sua bolsa – Vou ligar para o motorista do Otávio vir me buscar agora. Você quer uma carona, Janete?
– Não precisa, querida. Pego o ônibus que passa aqui na frente, afinal um pouco de chuva não me fará tão mal.
– Bom, você que sabe. Não tem problema nenhum ele desviar um pouco o caminho para largá-la em casa.
– Agradeço, mas acho que será uma chuva rápida. Assim aproveito para ficar mais um pouco com a mamãe.
Marise discou diretamente para o motorista, que em menos de 20 minutos já estava buzinando na frente da humilde residência dos seus pais. A casa ficava numa região pouco privilegiada da cidade. Com a chuva, rapidamente formaram-se várias poças na rua de chão batido. A lama estava escorregadia, fazendo com que o funcionário de Otávio, acelera-se o mais rápido possível dali. Apesar de pobre, o motorista já havia se acostumado com a vida chique da classe alta carioca, e nutria um certo asco da população de periferia.
As previsões de Janete não estavam nada certas, a chuva caiu impiedosamente. Muita água durante muito tempo, fez com que a rua ficasse alagada. Nenhum carro conseguia transpor aquela água toda, muito menos os ônibus, que não podiam arriscar o transporte de todos seus passageiros.
A solução foi avisar Jorge que iria dormir lá:
– Meu amor, caiu a maior água por aqui, e, como sempre, o ônibus só esta passando lá por baixo. Vou dormir aqui, e amanhã vou direto para o serviço. Esquenta o almoço de ontem no forno e arruma a cama antes de sair de casa, viu!?
– Porra, Janete, eu te avisei que ia chover. Porque você não saiu daí mais cedo? Agora vai ter que pegar o ônibus amanhã de madrugada.
– Ah, Jorge, não fique assim. Para mim, não custa nada acordar um pouco mais cedo. Espero que você deixe a casa em ordem amanhã antes de sair de casa, viu? Só porque eu não estarei em casa, não quero chegar à tarde e ver tudo bagunçado.
Ela desligou o telefone um pouco irritada. Não tinha gostado da atitude do marido, querendo julgá-la por ter sido surpreendida pelo mau tempo. Como ela iria imaginar que a rua alagaria?
Saiu do quarto da mãe e foi para sala, onde desfrutou da companhia dos pais até que estes se recolheram e ela ficou na sala com o irmão assistindo o início de um filme. Na distração da película, esqueceu-se que tinha um relógio com função de despertador e questionou o caçula:
–    Que horas você vai acordar amanhã?
–    Às 6:40, como sempre.
–    Então, por favor, acorde-me também porque preciso sair mais cedo para não chegar atrasada no serviço.
–    Combinado.
De qualquer forma, ambos dormiriam no mesmo quarto. A casa só possuía dois cômodos, e ela provavelmente acordaria com o barulho do irmão arrumando-se para abrir a padaria onde trabalhava ali perto, como caixa.

5

Pela manhã, os olhos de Janete abriram-se aos poucos, com piscadas longas, como o movimento da porta do quarto do seu irmão, que entrava e saia, preparando-se para o serviço. O menino havia esquecido dela, além de ter acordado 10 minutos depois do combinado.
–    Jadson, você acordou mais cedo ou está atrasado?
–    Estou atrasado! Onde está meu tênis?
–    Porra, moleque, porque não me acordou? Que horas são?
–    Nem lembrei de ti, desliguei o relógio e acordei 10 minutos depois. Se eu não chegar na padaria em 10 minutos, perco meu emprego. Puta que pariu, cadê este tênis?
–    Tá aqui, seu idiota. Ah! E eu não tenho um emprego para manter, seu irresponsável?
O irmão nem lhe deu ouvidos, colocou o tênis, bateu a porta e sumiu. Janete, que à esta altura já estava em pé, penteou rapidamente os cabelos, escovou os dentes, colocou a roupa, agarrou a bolsa e saiu deixou a casa sem ao menos despedir-se dos pais, que ainda dormiam.
Chegou apressada na parada do ônibus, que estava vazia e cercada por poças da chuva, que havia parado no meio da madrugada. Ela estranhou o fato de estar sozinha ali, pois não era tão cedo assim. Enquanto olhava, na ponta dos pés, o início da rua, apreensiva pela chegada do ônibus, Janete avistou um homem chegando. Estranhou o fato de ele andar apressado, enquanto olhava para trás. Talvez estivesse atrasado também, mas ele não olhava para a rua, ficava olhando para dentro de uma casa, abaixou-se um pouco, mexeu no punho estranhamente. Será que é um ladrão? Acabou de roubar aquela casa? Antes de chegar na parada, ele ainda olhou algumas vezes para trás. Ao vê-lo aproximando-se, achou curioso o fato de ele usar uma camiseta de mangas compridas. Ele sorriu timidamente, meio sem graça, meio com um peso na consciência. E tratou de puxar as mangas da camiseta bem para baixo, como se estivesse com frio, apesar do clima ameno daquela manhã.
Janete ficou aflita, deu um passo para trás, enquanto o homem olhava para o outro lado. A chegada de outras pessoas a tranqüilizou. Logo já estava pensando em coisas da sua rotina diária e com raiva do irmão que a fizera sair afoita de casa.
Ao ingressar no ônibus, depois de passar a roleta estranhou o fato do homem de camiseta longa ficar lá atrás. Será que ela vai roubar o cobrador? Vou sentar-me o quanto antes para que não me veja mais. Encontrou um lugar para sentar-se ao lado do corredor. Havia um idoso na janela, que a olhou com ar de reprovação. Estes velhos querem sempre sentar sozinhos, e sentou-se mesmo assim. Ao longo do trajeto a condução foi ficando bem cheia, vários passageiros a empurravam projetando os quadris com o balançar do ônibus, entre ela e o banco da frente. No trecho em que parecia não caber mais nenhuma pessoa lá dentro, o velho resolveu levantar para descer. Ah, desgraçado, eu não vou me levantar para dar licença, ele que arrume um jeito de passar. Com muita dificuldade, depois de quase sentar no colo de Janete, o pobre senhor chegou ao corredor. Depois disso, ele ainda teria que sujeitar-se ao empurra-empurra intenso até chegar à porta de desembarque.
Quando Jante pensou em deslocar-se para a janela, pois certamente seria uma das últimas a descer, vislumbrou uma perna passando por cima de seus joelhos. A desconfortável situação a deixou imóvel, mal enxergava quem estava tentando sentar. Olhou para o outro lado, evitando constrangimento.
Assim que o homem ajeitou-se, ela fingiu olhar para a rua, e deu de cara com o homem da camiseta comprida! Deve ter feito uma cara de espanto, pois o homem apressou-se por balançar a cabeça com o mesmo sorriso, sem graça e com peso na consciência, que dera na parada. Este cara deve ter feito alguma merda. Notou que ele matinha sua mochila sobre as mãos, ao invés de colocá-la no chão. Bom, o chão está todo molhado e embarrado, mas podia botar sobre os pés. Será que carrega uma arma? Será que vai render todo mundo daqui? Ou vai me pegar de refém? Enquanto pensava tudo isso, matinha a cabeça baixa, com medo de ser surpreendida por algum questionamento. Estava agoniada, começou a pensar em tudo que tinha acontecido, arrependeu-se de ter ido visitar a família, de ter negado a carona da irmã, de ter confiado no irmão.
Subitamente, o ônibus caiu em um buraco enorme, houve um estouro forte, aquela aglomeração humana no corredor balançou sincronizadamente, como uma dança ensaiada. Porém, devido à intensidade do solavanco, algumas pessoas não sustentaram o peso da multidão, e duas delas caíram sobre o colo de Janete, que ainda mais assustada devido aos seus temores internos, soltou um grito agudo, de pavor e raiva.  Tão logo sentiu aquelas pessoas sobre ela, tratou de empurrá-las, resmungando, com força e asco. Notou que o homem ao seu lado, ajudava-a , quase que sobrepondo seu corpo sobre o dela. Quando ele deu o último empurrão em um dos passageiros, seu corpo se chocou com o de Janete Ela achou que ele estava tentando esfregar-se nela. Além de ladrão, é tarado. Que nojo! Ele ainda sorriu, como se estivesse solicitando um agradecimento pelo seu esforço, mas aqueles poucos instantes de contato com ele, apenas aumentaram sua vontade de sumir dali.
Depois disso, Janete voltou a olhar para baixo, repensar no seu dia anterior, e neste péssimo início de semana, enquanto seu parceiro de assento, parecia um pouco inquieto, demorando para se arrumar. Ela então virou-se para ele, começou a perceber que uma das suas mãos, aquela que estava mais próxima dela, quase saia debaixo da mochila. Com o chacoalhar do ônibus, ela começou a perceber algo preso ao punho do homem, mas por debaixo de sua camiseta. Aquilo a deixou intrigada, parecia-lhe azul. Quase não resistiu ao impulso e agarrou o braço dele, mas quando este tirou a mão debaixo da mochila para coçar a perna, ela confirmou, ele usava um relógio igual ao dela. Imediatamente, Janete conferiu o próprio punho e constatou que o seu relógio já não estava lá. Como eu pude ser tão estúpida! Era a mim que ele queria roubar. Me ajudou só para tirar meu relógio de mim. Como eu não percebi, como não senti que ele retirou o relógio do meu punho? Ah, meu deus! Só me faltava esta agora. Seus olhos começaram a lacrimejar, Janete estava furiosa e frustrada ao mesmo tempo. Nossa, o Jorge vai me matar! Ele vai dizer que me avisou, que eu não podia ter ido na casa de minha mãe com o relógio, que eu deveria ter ido embora antes da chuva. Ah, não, isso não vai ficar assim!
Janete começou a mexer em sua bolsa e encontrou sua escova de cabelo, teve uma idéia.
–    Tira esta merda deste relógio bem devagar! – Disse enquanto pressionava o cabo da escova, ainda dentro da bolsa, sob a barriga do homem – E não olha pra mim, seu filho da puta.
–    Calma, dona. Que isso?
–    Fala baixo! Não olha pra mim, olha pra rua. Você me ouviu, tira esta merda, bem devagar. Não quero surpresas. Senão te meto uma bala aqui mesmo, seu merda.
–    Porra, mas não é bem assim!
Nervoso, os lábios deles tremiam, ora rindo, ora cerrando-se com força. Talvez não pudesse acreditar que aquilo fosse verdade.
–    Ta rindo do que? Quer morrer? Me dá esse relógio, me dá aqui. Isso, agora você sabe o que vai fazer?
–    Tirar a aliança?
–    Que aliança, tu acha que me interessa tuas nega? Tu vai é sumir daqui. Vai descer na próxima parada… não olha pra mim, eu falei. Olha pra rua.
–    Descer? Mas, e meu serviço, dona? Calma ai, eu fico quieto.
–    Claro que você vai ficar quieto, mais quieto ainda se eu te apagar. Anda, levanta. Levanta e sai. Você vai descer na próxima parada. Não olha pra trás, não fala com ninguém. Vai, vai.
O homem moveu-se com o maior cuidado possível, sem mencionar nada, olhando para frente, com os olhos vidrados, como se estivesse sob o efeito de algum tipo de hipnose. Janete não reconhecia a si mesma, jamais imaginou ter coragem para dar uma lição num marginal como aquele. Quando o homem sumiu do seu campo de visão, e ela o viu sair pela porta do ônibus, começou a chorar e sorrir. Eu fiz a coisa certa. Graças a Deus. Suas mãos tremiam enquanto ela enxugava os olhos, sentando-se na janela antes que alguém pulasse para o assento vago.
Ao longo daquele dia, sentiu um imenso orgulho de si mesma, parecia que havia ganhado um prêmio. Ela descobrira um potencial que jamais imaginou ser seu. O que é meu, não é fácil de tirar.
Ao chegar em casa, nem se importou com a bagunça que o marido deixara por lá, apesar de lhe ter solicitado que arrumasse tudo. Arrumou tudo com muita boa vontade, e ainda preparou o jantar enquanto Jorge não chegava. Ainda não havia decidido se contava ou não a ele sobre o episódio do ônibus.
Quando ele chegou, foi surpreendido com o abraço forte, um beijo longo. Ela estava feliz.
–    E aí, Janete, como foi sua noite?
–    Ah, tudo bem! Inclusive tem uma coisa que quero lhe contar…
O telefone tocou, e Janete correu para o quarto, onde ficava o único aparelho da casa.
– Oi Janete, sou eu sua mãe!
– Oi mãe! Como vai a senhora?
– Estou bem, querida. E você?
– Tudo certo, mãe. Acabei de chegar em casa, foi um dia longo.
– Ah, que bom querida. Eu estava preocupada com você. O Jadson me contou que você saiu um pouco atrasada.
– Tudo bem, mãe. Deu tudo certo.
– É, mas não é só por isso, não. Hoje de manhã, você acredita que um moço que mora aqui perto de casa foi assaltado?
– Sério?
– Sim, minha filha, dentro do ônibus. Você acredita? Este nosso país não sei onde vai dar. Ah, já ia me esquecendo. Acho que na pressa de sair, você acabou esquecendo o seu relógio aqui, viu?!
As pernas de Janete amoleceram, um frio subiu da barriga até a garganta, ela ficou sem conseguir falar.
–    Janete? Alô? Tá ainda aí?
Disfarçou a voz, conteve-se, engoliu seco e continuou.
–    Ah… é… claro, mãe. Estava pensando no assalto. Hum… pois é, eu ia te ligar pra saber do relógio, notei que tinha esquecido. Obrigada por ligar, mãe.
–    De nada, minha filha. Boa noite.
–    Beijos, mãe. Boa noite.
Seu braço ainda demorou a colocar o telefone no gancho, enquanto pensamentos e imagens lhe vinham em milhares. Seus olhos derramavam lágrimas de vergonha e horror. Abaixou a cabeça, teve raiva de si. Olhou para o punho, o relógio de outra pessoa agora adornava seu braço. Teve uma vontade de gritar, como se estivesse em um beco sem saída. Sentiu o abraço de Jorge, que estranhara a demora, mas ouvira o princípio do choro da mulher
–    O que foi, Janete? Alguma coisa grave? Quem era?
–    Era a mãe. Assaltaram um homem perto da casa dela. Ah, Jorge, que coisa este nosso país. Não temos mais segurança, não podemos mais confiar em ninguém.
–    Só por isso você chora?
–    Só por isso nada. Roubaram-lhe um relógio, que ele deve ter dado duro para comprar. Um relógio, Jorge. Você sabe o quanto custa ter um, né?! Imagina se fosse o mesmo que o meu?
Ele ficou calado, não entendia ao certo o motivo do choro, mas Janete parecia-lhe mais enérgica do que sempre fora. Por isso, achou que seu abraço era o que melhor tinha a oferecer.

T. Conthey