Sobre partidas

7 06 2019

o trem fechou a porta. ela não olhou para trás. moveu-se dentro do vagão enquanto caminhei para a escadaria. antes de descer, arrisquei um último olhar. pude vê-la novamente. assim como o trem, ela se afastava. não olhou para fora. talvez procurasse qualquer coisa que não fossem meu olhos.

desci cabisbaixo. ela estava certa. assim que a porta se fechou e o vagão pôs-se em movimento, nossos mundos se desataram. quase como se jamais houvessem existido. ela estava certa. não havia nada que sustentasse o frágil nó que nos enlaçou por um breve momento.

houveram apenas aqueles dias que correram como rio. muitas conversas, muitos passos entre o frio da noite e a luminosidade carinhosa dos dias do inverno. as mãos procurando uma à outra. o sonho de um amor maior.

houveram noites de amor. o corpo pequeno de menina que se sobrepunha à minha pele antiga. fazendo-me desejar mais uma chance de juventude. houvera a perfeição do seu gemido e a profundidade de beijos que pareciam não querer se extinguir.

houveram manhãs que pareceram meses. quase acordados amávamo-nos até que o próximo sonho surgia. ali a distância entres os corpos quase não existia. era como se cobrir com o corpo de quem se ama. mesmo que seja um amor breve como um a partida de um trem, que desaparece ao entrar no próximo túnel.

agora minha companhia era o vazio de uma estação solitária. o silêncio soberano que amplos espaços podem ter.

caminhando para casa, via mais cores pois meus olhos tinham o filtro das coisas belas. ela partira, mas nem por isso se foi de mim.

ela estava certa em não olhar para trás. ela estava certa pela animação ao partir. entre nós não havia nada visível. entre nós não havia nada palpável. nada onde pudéssemos nos agarrar. nada que nos desse sustentação. ela estava certa em voltar para a vida que as pessoas vivem. longe da minha vida, que nem eu sei onde vai dar.

houvera o amor no espaço que agora o vazio ocupava. houvera um preenchimento que se desvaneceu. houveram palavras que agora voltavam ao silêncio. e houveram momentos que agora são para sempre lembranças.

Amoroso





Devaneios de hotel

4 06 2019

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As horas morrem lentas enquanto pensamentos da vida caem sobre mim. Mesmo que eu saiba que não adianta fazer cálculos sobre contas prontas, deixo que minha cabeça dê voltas sobre o que já aconteceu. Estou deitado na cama de um hotel qualquer. Em algum canto da cidade de Singapura o tempo parece congelado.

Reflito sobre o que se foi e não pretendo reencontrar. Minha vida após muito tempo sob o mesmo prisma tornara-se fácil, rítmica, ajustada. Havia uma rotina. Havia pouca novidade. Havia uma repetição tão precisa quanto os dias da semana. Os olhos acostumados com as mesmas cores. Os mesmo sons em todas palavras.

Já sabia com quem falar quando as coisas não iam bem. Já sabia por quem sofrer por amor. Já sabia em qual rua passar quando a chuva virava tempestade. Nada parecia errado. Bastava, para isso, que se seguisse pelo mesmo e antigo caminho. Como navegar por águas conhecidas sob ventos alísios.

Então a vida mudou. Uma rajada de novidade me arrastou para dentro da incerteza. Nada seria perto do que fora antes. Não haveria mais rotina. Sequer haveria terra firme.

Muitas verdades se afogaram em alto mar. Partes do que fui morreu nas travessias para que novos pedaços do que sou nascessem em mim. Os olhos se regozijavam nas manhãs vividas sob cores inesperadas. Havia novos sons. Havia o balanço constante do mar, a dança que sempre amei.

Amigos ficaram em terra, distantes demais para serem alcançados. Amigos fizeram esforços, sinais de fumaça, e estiveram presentes. Amizades nasceram em ilhas e ondas, não pelo isolamento, mas pela cumplicidade das paixões pelo mar. A família sempre esteve no peito.

Nasceram novas memórias. Nasceram outras habilidades. Novas palavras surgiam em minha boca. A rotina falava outra língua.

Novas conclusões, de outro tipo de realidade, agora me abraçavam:
a vida busca a calma da meditação profunda;
o corpo não cansa de mergulhar em desafios;
o mar só conhece o movimento;
o céu jamais se fecha, é apenas espaço aberto;
as noites quentes demoram mais para cobrir as horas;
o sol é o anúncio de que tudo é apenas caminho;
e por mais fortes que forem as certezas, como rochas deixadas no tempo, elas também podem lentamente se desintegrar.

Lucas De Nardi

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